Cura é se cortar e não sangrar em cima de ninguém — é o enfrentamento solitário da dor que reorganiza a alma.
A cura, ao contrário do que muitos imaginam, não é feita de luzes suaves, flores perfumadas ou paz instantânea. Não é uma linha reta nem um momento de epifania onde tudo simplesmente se resolve. A cura é crua, densa, escura. Ela exige que você sinta o que evitou por anos. Exige que encare os fantasmas que você aprendeu a esconder atrás de uma rotina ocupada ou de sorrisos automáticos. A cura é um processo. E como todo processo, ela tem suas fases. Fases que, para quem vê de fora, podem parecer retrocesso, mas que na verdade são o verdadeiro avanço.
Não é bonito. Não é limpo. É como uma faxina daquelas que você tira tudo do lugar, espalha a bagunça para fora dos armários, e por um tempo tudo parece ainda pior. Mas só parece. Porque é nesse caos que a verdadeira ordem começa a nascer.
Por que dói tanto curar?
Porque estamos desaprendendo aquilo que nos ensinou a sobreviver. A mente resiste. O ego esperneia. Ele quer manter o controle, quer continuar no conhecido, mesmo que esse conhecido seja tóxico. Preferimos, muitas vezes, a dor familiar do que o alívio desconhecido. É aqui que entra a ciência: o nosso cérebro é feito para poupar energia. Mudança, para ele, significa gasto. E por isso, muitas vezes, escolhemos a ilusão ao invés da libertação. Preferimos nos manter presos a crenças como “homem não presta”, “não sou suficiente”, “sou azarada no amor”, porque elas nos protegem do risco de tentar de novo — e talvez falhar.
Só que o preço de manter essas crenças é alto demais. Elas moldam a nossa realidade, bloqueiam novas experiências e perpetuam a dor que fingimos não sentir.
A dor como mestra
Durante o processo de cura, não é raro se sentir exausta, com raiva, com vontade de desistir. Muitas vezes, me vi pensando que talvez fosse melhor não ter despertado, não ter começado essa jornada. A ignorância realmente pode parecer um alívio. Mas depois de ver, depois de despertar, não tem mais como voltar. Não dá para desver.
A dor vira mestra. Ela te mostra que o verdadeiro algoz não é o outro. É você. Seus apegos, suas expectativas irreais, sua resistência em abrir mão daquilo que já não serve mais. Doeu muito perceber que, por muitas vezes, fui eu quem manteve a ferida aberta. Esperando que o outro curasse algo que era meu.
Perdão e responsabilidade
A cura verdadeira está profundamente atrelada ao perdão. Não aquele perdão superficial, ensinado por conveniência, mas um perdão que vem da consciência. Que entende que sim, o outro errou — mas você também permitiu. Que entende que, por trás da raiva, há tristeza. E que por trás da tristeza, há um apego.
Assumir essa responsabilidade não é confortável. É muito mais fácil permanecer no lugar da vítima. Dói admitir que fomos nós que alimentamos o ciclo. Mas ao mesmo tempo, é libertador saber que, se a responsabilidade é nossa, a mudança também está ao nosso alcance.
Por que escolhemos permanecer na dor?
Porque é mais familiar. Porque fomos ensinadas a cuidar de todos, menos de nós. Porque aprendemos que ser forte é aguentar tudo calada. Porque acreditamos que só somos amadas se nos sacrificarmos. Porque, em algum momento, confundimos dor com amor. E quebrar esse sistema — esse sistema que molda o feminino como suporte de tudo — dói. Mas também nos reconstrói.
Somos colo para todos, menos para nós. Mas chega um momento em que ou você segue em frente, ou toma veneno emocional todos os dias esperando que algo externo mude. A cura começa quando entendemos que não é justo esperar que o mundo nos salve. A cura começa quando decidimos, de verdade, ser o próprio lar.
A caverna e o propósito
Há fases em que tudo parece escuro. Que parece que andamos em outra dimensão, sempre buscando uma tribo, mas sem querer interagir. Porque ainda estamos curando. E curar, às vezes, exige silêncio. Exige caverna. E outras vezes, exige voz. Eu escolhi curar em voz alta. Escolhi mostrar que há um caminho. Não um caminho perfeito — mas um caminho verdadeiro.
Quando você encontra pessoas vivendo o que você já viveu, e consegue oferecer a elas aquilo que você precisou e não teve, tudo começa a fazer sentido. A dor encontra propósito. A ferida vira medicina. E aí você entende: não sangrou em vão.
Quando uma mulher cura, todas ao redor são tocadas
Eu acredito na cura. Acredito que a dor é uma ponte para o propósito. Mas também acredito que não precisamos mais aprender só pela dor. Acredito que somos Deuses de nós mesmos. Que somos parte de algo muito maior, muito mais amoroso.
E acima de tudo, acredito no poder da cura feminina. Porque quando uma mulher cura, ela não cura apenas a si mesma. Ela cura sua linhagem. Ela cura sua filha. Suas irmãs. Suas amigas. Ela cura até mesmo o masculino ao seu redor, porque começa a mostrar uma nova forma de se relacionar.
Este texto é um marco. Um lembrete de que aqui é só o começo. Outras virão. Outras se curarão. E talvez, leiam isso na noite escura da alma e sintam que não estão sozinhas. Que existe saída. Que existe colo. Que existe caminho.
Esse é o verdadeiro milagre da cura: ela começa em nós, mas nunca termina em nós.